Trás-os-Montes

Vou-vos contar uma história de contrabando!

Rua de Linhares dos Poços, n.º74, Vilar de Perdizes, Montalegre, Trás-os-Montes. Aqui, viveu a D.ª Maria Santos.

Uma senhora ‘faladeira’, que conheci com os seus 76 anos. Tinha sido contrabandista.

‘Ó minha filha, quer uma maçã, que lha dou? São das minhas, não tem remédio nenhum’

Foi assim que conheci a D.ª Maria, numa conversa à mesa, cheia de sabor a antigamente, com cheiro ao mais genuíno que ainda há.

E não foi só uma maçã com sabor e aroma frescos, mas também o presunto, o pão centeio.

Sabe qual foi a minha vida?

Sabe qual foi a minha vida? Era contrabandista. Passava produtos regionais e bacalhau pra lá, e açúcar e azeite pra cá. Ou aquilo que calhava, ou o que nos pediam: café, gasoile, binho (V. Alguns até passavam gado. Tchigamos a passar minério pra lá, das minas da Borralha. Uma vida muito sacrificada. No Inberno, com nebe, à chuiba, à noute, qu’era qando podiamos fintar os guardas. Pra criar os mous filhos’

Mas alguns guardas também faziam parte do esquema, tanto do lado de Portugal, como do lado de Espanha. Por vezes acontecia que o contrabandista, depois de caminhar horas pelo monte , sempre com o coração nas mãos, se apanhado pela autoridade, trocava a mercadoria pelo silêncio. Era um negócio para todos.

Naquele tempo, especialmente na década de 50, quando a subsistência das populações raianas dependia quase exclusivamente da agricultura tradicional e as famílias tinham muitas bocas para alimentar, o contrabando tornou-se um complemento à economia local. Significava sustento e às vezes, alguma riqueza.

E nem as fortes crenças católicas e o medo de ofender a Deus impediam esta gente. Os mais afoitos e destemidos criaram a crença de que também os ´santos’ os protegiam. A provar tal ideia, está a capela de S. Lourenço, tornado no padroeiro dos contrabandistas. Por ali passavam as rotas, ali se faziam as trocas, nas ‘barbas do santo’.

Ó D.ª Maria, mas você carregava a mercadoria toda às costas?

‘Não menina. Eu tinha um burro. E palmilhei essas terras todas do nosso Barroso. Conheço tudo. E ficava bem contente qando uma alma me dava uma côdia de centeio pra comer.’

Realmente, a genuinidade, a hospitalidade, a pureza destas populações ainda permanece. Qualquer um que visite, que percorra os trilhos de Montalegre, que pare nas aldeias e converse com esta gente, sente isto. Na conversa à ‘soalheira’ junto à fonte, ou à mesa de um ‘labrador’, sempre sempre com o presunto e a chouriça, belos exemplares do fumeiro de Montalegre e o pão centeio, sente isto.

E depois, o dia-a-dia?

A lavoura tinha sempre que acontecer. A sementeira das batatas e do centeio essencialmente, mas também a horta com as couves, as abóboras (ou as ‘botelhas’ como diria a D.ª Maria, talvez pela influência do galego), as nabiças, as beterrabas, o milho, o feijão, as ervilhas e as favas. 

Todas as famílias dependiam disso, ainda que os mais ricos e donos dos terrenos usassem os mais humildes para o trabalho árduo. Muitas vezes crianças, com a idade daquelas que levamos hoje a ver ‘O Panda e os Caricas’, já iam ganhar a ‘geira’, que podia ser unicamente a refeição do dia.

Os rapazes ainda podiam ter a sorte de fazer a 4ª classe. Mas até estes ,antes de começar o dia de escola, iam a Espanha buscar vinho, que nunca foi bom, mas ao menos era barato.

As raparigas iam servir para casa dos fidalgos, e acabavam por casar muito novas, com 15, 16 anos, normalmente com homens mais velhos e ‘sabidolas da vida’. Poucas chegam a conhecer o respeito, muito menos o carinho.

‘O mou home era ruim pra mim. Qantas trepas me deu. Qando binha cos copos atão é que era. Mas olhe, graças a Deus fizemos a nossa bidinha. Criei os mous filhos, 3 filhas e um rapaz. Estão todas bem, graças ao Senhor. Todos no estrangeiro. Mas telefonam muntas bezes. São munto mous amigos. Fiz a minha casinha, como bê, não debo nada a ninguém. Nem fabores.’

‘Ai filha, e o calçado?’

‘Eram socos de madeira. A gente pegaba assim numa mão tcheinha de feno, arranjavamos de maneira a meter nos socos, e aquilo quecia-nos os pés. E vou-lhe contar uma cousa: d’inberno, nas geadas, a canalha andava cos pezinhos geladinhos. Inda me lembra de – com licença da palavra – mijar prós pés pra aquecer. Olhe qu’inda me lembra dos primeiros sapatinhos que tive, que eram do meu irmão a seguir a mim. E só os calçava pra ir à missa’.

Mas qando era a época da colheita dos cereais e das frutas eram sempre uma festa.

A juventude namoradeira aproveitava a desfolhada. Sempre à espera que aparecesse uma espiga de milho vermelho – o milho-rei – para roubar um beijo.

E nas cegadas do centeio ou do feno, no pico do verão, sempre dava para apreciar as moças e os moços em trajes mais leves.

Hoje já não se fazem cegadas pois não, D.ª Maria?

‘Não senhora. Olhe, à uma, não há povo. Uns emigraram, outros são belhos como eu, outros morreram. À outra, agora há máquinas que fazem o trabalho todo.’

Mas antes, a tradição mandava que a messe, ou seja, a planta do centeio, já em palha de tão seca, fosse cortada à mão, com a foice. À frente iam normalmente os homens. Cantavam-se as modas tradicionais para dar ânimo. Atrás seguiam as mulheres, que a enfaixavam.

Os carros de bois, de burros ou de mulas faziam o transporte até à eira: Normalmente uma área em laje, desimpedida, no cimo da povoação, onde houvesse boa corrente de ar. Ali era feita a ‘malhada’. A palha, literalmente malhada, desprendia a espiga e os grãos de centeio. Seguia-se a peneira, deixando que o vento levasse tudo e deixasse o grão.

Sabiam que é no centeio se conservam dos produtos regionais? E que na gíria as pessoas chamam ao cereal, de ‘Pão’?

Por exemplo, era nas sacas de centeio que se guardavam as castanhas. Assim, elas não secam, não ficam velhas. Também se conserva queijo, como aquele que a Loja das Couves vende, o queijo terrincho. Não é só o sabor, é a história, são as raizes.

O centeio também é a base de todo o pão transmontano – o bom e saboroso pão centeio transmontano. 

A importância do tradicional cultivo nas terras do Barroso deste cereal, é incontornável. 

Imaginem que os telhados das casas eram de ‘colmo’.

O que era o colmo?

Era a palha do centeio, sem ser esmagada. Antes dos processos modernos. Com ela , faziam-se as camas aos animais nos estábulos, localmente chamados de ‘lojas’. Faziam-se as capas para a chuva e para o frio, as ‘crossas’. Usavam-nas sobretudo os pastores. Os colchões eram feitos de colmo, e depois revestidos de tecido. Portanto, nessa época, já as gentes isoladas destas terras punham em prática os 3 R’s: Reduzir, Reutilizar, Reciclar. Pegada ecológica? Quase nula. E nem sabiam.

E hoje, D.ª Maria? Como é a vida hoje?

‘Ó mou filho, hoje a gente tem tudo.

Temos luz, temos supermercados com tudo, temos telefones, televisão. Já não fazemos as meias à mão, nem as camisolas.

Por um lado estamos milhôr, mas por outro, tenho saudades de antigamente.’

É verdade, D.ª Maria. Temos de concordar que realmente a vida antigamente era muito dura. Hoje, ninguém aguentava, segundo dizem. No entanto, a herança que essas tradições nos deixaram, o legado, a história, a sabedoria, a riqueza, as nossas raizes… Terão preço? Poderemos simplesmente trocá-las pelo conforto da vida moderna? Ou escolheremos revivê-las quando estivermos à mesa, com os nossos amigos, com a nossa família, no conforto da vida moderna? Até temos quem entregue a tradição à porta de casa ou do trabalho. Não temos desculpa, pois não D.ª Maria?

Afinal, que valor tem a história da D.ª Maria?

Enriquecedora? Saudosista? Apaziguadora? Revivencialista?

Pelo menos, que não desapareça com a sua geração.

E a Batata de Montalegre?

Têm uma história?

Claro! Mas fica para a próxima, que hoje já é tarde.

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